31 de março de 2009

Rabugento / Malhumorado

Entro no primeiro restaurante. A parede está coberta de rabiscos e escritos a giz. Saco, minha mão fica áspera com giz. Chega o suco de laranja. Saco, é suco em garrafa, a garrafa é minúscula e o copo está cheio de gelo. Pode tirar o gelo, por gentileza? Como primeiro prato, quero um arroz à cubana. O ovo com a gema dura, por favor. Saco, a gema vem mole. Repito: com a gema dura. E lá se vai o prato de volta para a cozinha.

Na mesa ao lado, um senhor faz seu almoço sozinho. Saco, para que tanto barulho para comer? Começa a fazer frio e é preciso vestir o casaco. Saco, a gripe está indo embora e uma corrente gelada pode ser fatal. Numa mesa na frente, um homem de meia idade demais adiciona água ao seu vinho tinto. Saco, ninguém merece essa cena. A mesma pessoa chama a garçonete com a voz baixa. Ela não atende. Saco, a pessoa dá um sorriso sem graça como se estivesse sendo observada por todo mundo.

Chega o segundo prato, uma carne de novilho com fiapos que ficam presos entre os dentes. Saco, vou ficar com carne entre os dentes. Em outra mesa, o cliente acende um cigarro. Saco, a fumaça vem direto na minha cara. A garçonete diz que posso escolher entre sobremesa e café. Saco, esqueço meu auto-compromisso anti-açúcar e peço sobremesa. Vamos adiantar as coisas: a sobremesa e a conta, por favor. Saco, a conta não chega nunca. O jeito é pagar direto no caixa. Saco, a garçonete aparece com a conta no meio do caminho.

Saco, não recomendo esse restaurante.

Ricardo põe legenda na foto:
O restaurante é de comida cubana e fica perto do metrô Bilbao. Não sei o nome.

Ricardo conta ao pé do ouvido:
Ovo cru, conforme um alerta emitido recentemente pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, contém salmonela. Daí o cuidado com gemas moles.

Ricardo dá o caminho das pedras:
Na dúvida, o mais seguro é comer em algum VIP's, uma rede de restaurantes com comida sempre boa que se encontra em qualquer esquina.
...

30 de março de 2009

Manipulação na esquina / El sesgo español

Os jornais na Espanha tomam partido sem pudor. Imparcialidade zero. Não me refiro aos editoriais, lugares livres para que a publicação torne público o que pensa, deseja ou repudia. Me refiro às reportagens, que pelo menos na teoria devem ser objetivas e neutras.

Apesar de o acontecimento ser um só, no dia seguinte cada jornal mostra a realidade que mais lhe convém. E isso, convenhamos, é coisa fácil.

Ouve-se só um lado da história, ignora-se a versão da outra parte, redige-se uma opinião de modo que soe como verdade universal, enche-se o texto de adjetivos e juízos de valor, conta-se só uma parte do fato... E pronto. Eis aí um tendencioso prato de notícias. O molho é político e bem picante.

Se o jornal é anti-Zapatero, nele só se lerão ataques diretos e indiretos ao governo e elogios rasgados à oposição. E vice-versa. Se o jornal é contra o aborto, só noticiará que essa prática é criminosa e se terá a impressão de que a Espanha pede a uma só voz a "defesa da vida". E vice-versa.

Uma notícia importante nos jornais de hoje foram justamente os protestos contra a mudança na lei do aborto.

Num extremo, o Público escondeu o protesto numa chamada minúscula no pé da primeira página. No meio termo, o El País e o El Mundo deram uma foto e certo destaque. No outro extremo, o ABC e o La Razón publicaram fotos gigantescas dos protestos na primeira página.

A seguir, o que eles disseram:

Público
Protesto: Perde fôlego a mobilização católica contra o aborto.

El País
Milhares de pessoas pedem em toda a Espanha que se proíba o aborto.

El Mundo
Dezenas de milhares de pessoas manifestam contra o aborto.

ABC
Um clamor pela vida toma conta das ruas de toda a Espanha.

La Razón
Uma onda vermelha em defesa da vida e contra o aborto.

Espanhol que é espanhol sai da banca sabendo que a publicação embaixo do braço vai dizer exatamente aquilo que ele pensa.

Recentemente, o New York Times publicou um artigo em que, com muito acerto, disse que "existem provas bastante convincentes de que, em geral, não desejamos realmente informações confiáveis, e sim as que confirmem nossas ideias preconcebidas".

E assim concluiu: "Podemos acreditar intelectualmente no valor do choque de opiniões, mas na prática gostamos de nos encerrar no útero tranquilizador de uma câmara de ecos".

Ricardo põe legenda na foto:
Nas fotos da capa, o La Razón e o ABC deixam claro que são inflexivelmente contra o aborto.

Ricardo conta ao pé do ouvido:
O La Razón tem uma editoria diária de religião.

Ricardo dá o caminho das pedras:
Conheça neste link os principais jornais da Espanha.
...

28 de março de 2009

Emoção em Lisboa / Emoción en Lisboa

Caminhar pela zona antiga de Lisboa é como folhear os livros de história da época do colégio.

Sobre um imenso pedestal na Praça do Rossio ainda governa o rei dom Pedro IV, o mesmo imperador dom Pedro I do Brasil.

Perto dali, no Largo do Chiado, uma estátua mostra Fernando Pessoa sentado em seu café favorito.

A praça ao lado presta uma justa homenagem a Luís Vaz de Camões.

O Elevador de Santa Justa, a Rua Augusta, o Arco Triunfal e seu mármore, a Praça do Comércio e -finalmente- o Rio Tejo. Imponente, majestoso, cheio de vida. Reis passam e primeiros-ministros passam, mas o velho Tejo continua.

Calçadas de bom gosto pavimentadas com pedras portugueses. Praças de concreto, ainda assim elegantes, com uma estátua no centro. Edifícios ao estilo pombalino. O casario com belas fachadas de azulejo.

A cidade é portuguesa, mas dá a curiosa sensação de que também nos pertence. Tudo muito diferente e ao mesmo tempo tão familiar. Assim, sem esforço, Lisboa emociona.

Ricardo põe legenda na foto:
O Arco Triunfal liga a Baixa à Praça do Comércio e oferece a melhor vista do Rio Tejo.

Ricardo conta ao pé do ouvido:
A Baixa é um microbairro planejado no centro antigo de Lisboa. Foi construída pelo Marquês de Pombal numa zona baixa, plana e segura depois de o resto da cidade ter sido arrasado em 1755 pelo Grande Terremoto.

Ricardo dá o caminho das pedras:
As fotos da viagem a Lisboa estão neste álbum.
...

24 de março de 2009

As quatro estações / Las cuatro estaciones

Na Espanha, as estações do ano são muito bem marcadas. Calor é calor, frio é frio, pão é pão e queijo é queijo. Cheguei em fevereiro, mês de liquidações e de pleno de inverno, com a neve caindo e os termômetros na casa dos dois, três graus.

Quem não tem roupa apropriada para o gelo, como eu, deve seguir a dica da Bibiana e adotar o visual cebola, ir colocando casaco em cima de casaco, em camadas. Um par de luvas vai bem e um cachecol idem.

Também é importante ter hidratante, coisa que eu achava frescura até ver a pele da minha própria mão passar pelas seguintes etapas: fica áspera, depois começa a se esfarelar feito giz, em seguida fica vermelha e por fim está em carne viva. Escama não dá!

Eu tinha um cachecol quando criança, um presente da vovó, mas não gostava porque pinicava o pescoço. Mas aqui não teve jeito, comprei um na promoção. Ou melhor, três porque a promoção estava boa demais.

No começo, inexperiente, girava o cachecol de qualquer jeio em volta do pescoço, bem desajeitado. Na saída de uma das aulas, fiquei de olho no colega chileno e aprendi como se faz o nó. Fácil, fácil.

Já estamos na primavera. O pólen da nova estação não fez bem a dois colegas da América Central, que se viram no meio de um ataque de alergia primaveril, o dia inteiro espirrando. Eu também não passei invicto pela mudança de estação. Ontem à tarde a garganta deu sinais de revolta. À noite já estava fechada. A primavera tem seus dias gelados. Hoje tive de sair com cachecol no pescoço. Ao estilo chileno.

Ricardo conta ao pé do ouvido:
O inventor da calefação merece um Nobel. Ou um Oscar. Bendita seja essa pessoa!

Ricardo põe legenda na foto:
Publicidade de passagens de ônibus numa estação de metrô de Madrid, muito provavelmente a Diego de León que dá nome a este blog.

Ricardo dá o caminho das pedras:
Antes de marcar viagem é fundamental olhar a previsão do tempo.
...

18 de março de 2009

Rúlio / Julio

Um dos jornais ultraconservadores aqui de Madrid publicou ontem com destaque que o rei Juan Carlos I é "a imagem do país no mundo", segundo uma pesquisa do Foro de Marcas Renombradas de España.

A lista é interessante.

Logo em seguida aparecem Fernando Alonso, Pedro Almodóvar, Penélope Cruz, Antonio Banderas, Zapatero, Julio Iglesias, Raúl (Real Madrid), Rafael Nadal, Pablo Picaso, Ferrán Adrià (chef de cozinha), Plácido Domingo e SM Reina Sofía.

Julio Iglesias (capricho na pronúncia: Rúlio Iglêssias) me chamou a atenção. Por razões óbvias. E logo em seguida me dei conta de que em todas estas semanas não ouvi nem sequer o nome Rúlio, muito menos uma música no rádio.

Confirmei essa impressão com a prova dos nove. Joguei o nome do rei na internet. O jornal "El País" faz 77 referências. A "Folha", 120!

Alguma coisa acontece. Julio, mais que para consumo interno, é um produto de exportação. Mais ou menos como acontece no Brasil com Alexandre Pires e Paulo Coelho. Para nossa sorte.

Neste exato momento Julio Iglesias está numa concorridíssima turnê açucarada pelo Brasil: Sorocaba, São Paulo, Bauru, Rio de Janeiro, Ponta Grossa, Curitiba, Cuiabá, Campo Grande e Araçatuba.

Só lugar de categoria!

Ricardo conta ao pé do ouvido:
Julio Iglesias já foi goleiro do Real Madrid. Vai que é tua, Rúlio!

Ricardo põe legenda na foto:
CDs de Julio Iglesias à venda na filial Sol da loja de departamentos El Corte Inglés.

Ricardo dá o caminho das pedras:
Este é o site do cantor de "Manuela" e "Coração Apaixonado", em 21 idiomas. Atenção, poliglotas! Atenção, poliglotas bregas!
...